sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Descanse em paz?



Em uma de suas cartas, o romancista Gustave Falubert escreveu: “Que grande necrópole é o coração humano! Para que irmos aos cemitérios? Basta abrirmos as nossas recordações; quantos túmulos!”

Em nossas pós-modernas e alvoroçadas épocas, estamos perdendo parte da capacidade de abrir as recordações, mesmo as tumulares. Hoje a velocidade inclemente do cotidiano não nos oferece tempo para recordações muito duradouras; se estamos com pouco tempo para cuidar da vida, menos ainda nos sobra para cuidar da morte.

Não temos tempo! Houve uma época na história humana (e não faz muito) na qual, quando um dos nossos morria, parávamos tudo o que estivéssemos fazendo; o trabalho era interrompido e, se preciso, faziam-se longas viagens, até noturnas (sem os rápidos aviões, carros e boas estradas atuais), mas, não deixávamos de, velando os partintes, cuidar dos ficantes.

Se com a morte não nos conformamos, ao menos nos confortamos, nos fortalecemos em conjunto, nos apoiamos. As pessoas ficavam, às vezes por um dia e uma noite, em volta da família, aglomerados, grudados, exalando solidariedade e emoção, orando e purgando lentamente o impacto, mostrando aos mais próximos que não estávamos sozinhos na perda.

Um dos mais fortes indícios da presença humana é o cuidado com os mortos; quando as localizamos, o fazemos por intermédio de túmulos, inscrições, ossos agrupados ou corpos enterrados ou cremados. A própria palavra cemitério (derivada do grego), usada em vários idiomas, significa lugar para dormir, dormitório, lugar para descansar. Deixar esvair essa marca é extremamente perigoso, pois não propicia a especial ocasião de meditar sobre a vida e, eventualmente, descansar em paz.

Deixamos de velar (no sentido de tomar conta, cuidar) para velar (como cobrir, ocultar, esquecer, apagar).

Não temos mais tempo! Se recebemos a notícia de que algum conhecido faleceu, olhamos o relógio e pensamos: “Vou ver se dou uma passadinha lá...” alguém morre às 10 horas da manha e, se der, será enterrado até as cinco da tarde, de maneira a, em nome do “não sofrermos muito”, sermos mais práticos e rápidos. Nem as crianças (já um pouco crescidas) são levadas a velórios; muitos argumentam que é para poupá-las da dor. Isso não pode valer; parte delas cresce sem a noção mais próxima de perda e, despreparadas e insensibilizadas para enfrentar algumas situações nas quais nossa humanidade desponta, simultaneamente, fraca e forte, perdem força vital.

Por isso, não será estranho se, em breve, tivermos que nos acostumar também com o velório virtual, ou, principalmente, como já está começando em países mais “avançados”, o velório “drive thru”: entra-se com o carro, coloca-se a mão sobre o corpo do falecido (enquanto um sensor lê tuas digitais para enviar um agradecimento formal), aperta-se um botão com a oração que se deseja fazer e... pronto, já vai tarde. Parece ridículo? Se não prestarmos atenção, assim será.


Fonte: Mario Sergio Cortella, do livro “Não nascemos prontos!”, pagina 35

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